quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A CASA DE JESUS

 

                Algumas considerações sobre ser cristão e ser espírita. Relato de Divaldo Pereira Franco.

                ... "Um espírita, nos moldes do cristão primitivo... Eu via os companheiros fazendo palestras (sem censurá-los) e, saindo dali, eram homens do mundo, pessoas comuns, agradáveis; tiravam seus largos períodos de férias, faziam “estação de águas”. Quando meditava sobre o Cristianismo primitivo, o que me empolgava era ver os ricos se tornarem simples; os poderosos se tornarem amigos. E então eu notava que muitos companheiros se tornavam espíritas e, simples que eram, ficavam presunçosos; pobres que eram, ficavam com “status” de ricos, sem ter os meios. isso me chocava muito, porque, se o Espiritismo é a revivescência do Cristianismo, conforme acreditamos, nós teríamos que viver à semelhança dos cristãos. Não é que se deva deixar as roupas e andar maltrapilho. Não é a postura externa, porque uma pessoa pode estar coberta de jóias e ser simples, e outra pode estar pedindo esmolas e ser orgulhosa... Mas, é que o Cristianismo tem que ser uma revolução interna, em que se veja, no próximo, a figura do irmão, realmente, e não a de alguém a quem estamos beneficiando.
                Nós já adquiríramos a “Mansão do Caminho”, o lar de crianças, àquele tempo, mas havia muita gente que me ajudava. Eu apenas auxiliava banhando os internos, como até hoje o faço.
                Então, um dia, pensei:
                — Meu Deus! Todo mundo só pensa em fazer obra para quem vai viver; a maternidade, a escola, o hospital, a creche, etc. — e para quem vai morrer? Se nós cremos que a vida continua, temos que preparar a pessoa para a vida que irá enfrentar.
                Eu passava de ônibus ou de bonde e via as pessoas dormindo embaixo das marquises. Isso me provocava uma grande dor e dizia-me a mim mesmo: estão morrendo! Por que os hospitais não possuem um lugar para acolhê-los, nem a Santa Casa de Misericórdia, sequer?
               Foi quando sonhei em fazer uma obra que fosse um desafio para minha juventude. Não pensei em uma obra para os outros trabalharem e, sim, para eu próprio trabalhar. Porque é muito cômodo construir uma obra para os outros se esforçarem, e os fundadores ficarem de longe. Assim, imaginei uma casa para se morrer.
                Um dia, conversando com Chico Xavier, propus-lhe:
                — Pergunte ao Dr. Bezerra o que ele acha dessa idéia.
                O Dr. Bezerra informou-nos, então, que seria ideal um trabalho de tal natureza, porque as pessoas pensam muito em obras, fazer construções e plantas e mil coisas e, enquanto estão discutindo, “a caridade chega atrasada”. Durante o tempo em que se está planejando, os pobres estão morrendo. Então, vamos começar atendendo o pobre no fogão de tijolo, até o dia em que possa ter o elétrico.
                Viajei a São Paulo para uma série de palestras. Estava numa reunião quando contei esta minha idéia, mas não dispunha dos meios para concretizá-la. Uma senhora presente sensibilizou-se com o projeto e, para minha surpresa, falou:
                — Senhor Divaldo, eu sempre desejei ser útil. Sou uma mulher muito rica, da sociedade, e mesmo que eu queira visitar os pobres, mesmo que eu queira ir à favela, o meu marido nunca o permitiria, criando um problema doméstico. O senhor tem vontade de fazer isso e não tem o dinheiro. Eu tenho o dinheiro e a vontade, e não posso fazê-lo. Então vou dar-lhe os recursos para que o senhor concretize esse trabalho. Quanto será necessário para adquirir uma casa como a que necessita?
                Eu havia imaginado uma casa dentro do mangue, da invasão, dentro da lama do mar. Respondi-lhe:
                — Vinte mil cruzeiros. (Vamos dizer que essa quantia corresponda hoje a duzentos mil)
                Ela abriu a caderneta, preencheu um cheque e mo entregou.
                — Aqui está. Agora o problema é com o senhor.
                Vejam as bênçãos da Divindade. Cheguei a Salvador, fui à região da invasão e encontrei uma tapera. Uma ruína de taipa (feita com varas e barro), dentro da lama. Porque eu queria um lugar onde se pudesse levar uma pessoa em quase decomposição... Num lugar muito arrumadinho, o pobre não pode cuspir à vontade.
                Coloquei à porta uma tabuleta com o nome: CASA DE JESUS.
                Tinha dois quartos, uma saleta e uma cozinha que é um “cochicho” (uma palavra baiana), que era um nada. E deveria ficar sempre aberta.
                Saímos e fomos recolher os que dormiam em baixo das marquises. Recolhemos um epiléptico. Ele teve tantas crises de epilepsia que ficou deformado; sofria de artritismo e reumatismo e consolidou várias juntas — não dobrava o corpo. Chamava-se André. Vivia em constantes crises convulsivas. Tinha uma ferida na cabeça que não cicatrizava. Colocamos até creolina para que os bichos saíssem.
                Eu era uma pessoa sensível. Nasci num lar modesto, mas asseado. Isso me dava uma repugnância de estômago — pela falta de hábito. Eu fazia os curativos engulhando e até vomitando, às vezes.
                Depois, ele, como epiléptico, na crise, perdia o controle dos esfíncteres. Eu e Nilson o lavávamos. Nós, com alguns amigos, dávamos os plantões noturnos.
                Apareceu-nos uma senhora, Dona Antônia Vilas-Boa. Ela me propôs:
                — Durante as horas em que vocês estiverem trabalhando, eu passo aqui para cozinhar, tomar conta da casa. Vou convidar umas amigas que freqüentam o “Caminho da Redenção”.
                Assim, duas ou três senhoras, pobres como nós, passavam o dia, enquanto nós, os homens, passávamos a noite. A casa ficava aberta vinte e quatro horas.
                Depois, veio um outro doente, que era psicopata e tivera um derrame cerebral. Em seguida, veio uma senhora que eu encontrei na rua. Foi a cena mais comovedora da minha vida.
                Essa mulher teve varíola e a amputação de uma perna, com câncer. Eu a vi atravessando a Praça Municipal, pulando, segurando-se a um pau, à guisa de apoio. Fui até ela, peguei-lhe o braço, coloquei-o em meu ombro. Havia um rapazinho moreno ao seu lado, em silêncio
                — A senhora quer ajuda? — indaguei-lhe.
              — Quero, sim, senhor!
                Ela havia saído do hospital de isolamento e ia para um bairro muito pobre, muito longe, teria que tomar o bonde.
                Observando-a, a saltar, com tanta dificuldade, pensei Meu Deus! Como é que essa criatura vai pegar o bonde, depois de sair do hospital neste estado?
                Olhei ao redor e vi um táxi. Eu nunca havia usado uni táxi, porque não podia. Fui até o chofer e perguntei-lhe pei quanto a levaria até a casa. Ele falou uma quantia que eu não tinha e eu lhe disse.
                  — O que é? — indagou-me.
                  — É para levar aquela senhora ali.
                — O que ela é sua?
                — Nada, encontrei-a agora — esclareci.
                O chofer me olhou e respondeu:
                — Se você pode fazer a caridade, por que eu também não posso? Quanto é que você tem?
                Eu tomei do que tinha e lhe entreguei. Ele recebeu-o, dizendo:
                —Você dá a sua parte e o resto fica por minha conta.
                Eu a coloquei no carro com o rapazinho e fomos até aonde o carro pôde ir. Quando chegou no ponto em que os buracos impediam a sua passagem, descemos e eu a carreguei. O rapaz ao lado, assistindo a tudo em silêncio.
                Levei-a até uma “avenida” de casas — um beco de casas, uma viela. Ela me apontou uma casinha humilde e quando chegamos em frente, uma moça veio à janela e falou:
                — Aqui você não entra, para não contaminar meus filhos.
                A mulher começou a chorar. Aquela que a expulsava de casa era uma filha de criação, e o rapaz era o marido dela.
                Eu a colocara no chão e fique/parado, pensando: e agora, para onde vou levá-la?
                Então lhe expliquei:
                — Se a senhora não tem para onde ir, eu tenho onde levá-la. Eu tenho a “Casa de Jesus”, mas o máximo que lhe posso dar é uma cama “patente”, um colchão de palha, a comida e nada mais.
                — Meu filho, eu estou na rua. Não tenho para onde ir.
                Era uma mulher que me pareceu fina pela forma que falava. A “filha” pegou uma mala e jogou-a na rua. Eram os únicos bens daquela criatura. Eu chamei o táxi; o chofer estava parado, olhando de longe a cena.
                Carreguei-a de volta ao carro e levei-a para a “Casa de Jesus”. Foi a primeira mulher. Só havia homens internados. Essa criatura veio a morrer nos meus braços. Sabem de quê? Vitimada por lombrigas. Morreu asfixiada. Foi a morte mais terrível que eu já vi. Estávamos conversando, ela começou a tossir e expeliu uma lombriga. Aí começou a vomitar. Eu fiquei apavorado, peguei-a pelas axilas, levantei-a, mas ela morreu asfixiada, pois as lombrigas saíam pelo nariz, por todos os orifícios naturais. Tive um choque tremendo; eu não pude fazer nada. Em momentos, ela morreu. Teria sido salva, possivelmente, com um purgante de óleo, se nós soubéssemos.
                Essa mulher, antes de morrer, um dia, me disse:
                — Pegue ali a minha mala e abra-a.
                Eu a abri. Dentro havia um álbum de fotografias. Por incrível que pareça, essa mulher tinha sido Embaixatriz do Brasil no Egito, na Tchecoslováquia, no Uruguai... Havia sido esposa de um Embaixador, no passado, e terminou os seus dias terrenos numa situação dessas, porque a vida é muito incerta.
                Vivíamos ali, na miséria com os miseráveis. Eu tinha um salário, o Nilson também, tínhamos a casa de meus pais, onde morávamos, mas dávamos tudo o que recebíamos, já que pedíamos a outrem — porquanto fica muito fácil fazer a caridade pedindo aos outros, a gente só entra com o sorriso e a simpatia — por isso, nós vivíamos ali, comendo a mesma comida, pois o dinheiro não dava para que fôssemos comer em outro lugar. Havia alguns poucos amigos que participavam deste trabalho, entre os quais o confrade Augusto Soares.
                Uma noite, eu me encontrava muito sofrido. Tínhamos dezesseis doentes, os colchõezinhos espalhados, tomando todo o espaço disponível. Eu estava pensando: o que vamos fazer? Nessa hora, o Dr. Bezerra me apareceu e contou uma história muito bonita.
               Duas damas (disse ele), muito ricas, da sociedade de Moscou, foram ao Teatro Bolshoi. Assistiram a um peça, uma ópera, que retratava a história de um rei cristão que termina louco. As duas ricas damas, vendo aquela cena choraram, comoveram-se e todo o teatro também. Quando terminou, elas saíram e encontraram um homem, à porta, pedindo esmola. Uma delas, comovida, tirou o pesado casaco de peles para dar-lhe, pois ele estava sofrendo o frio da noite de Moscou. A outra, porém, impediu-lhe o gesto, explicando:
                — Não faça isto! Quando chegarmos a casa mandaremos cobertores. Seu casaco é muito caro, ele não vai valorizá-lo.
                Ela deteve o gesto bom e concluiu:
                — De fato, você tem razão. Vamos fazer como sugeriu.
                Vestiu o casaco novamente, dizendo ao homem: — Daqui a pouco eu lhe mandarei cobertores e agasalhos.
                Entraram na carruagem e foram para o palácio. Ao chegarem, tomaram chá com biscoitos, deitaram-se e esqueceram o necessitado. Pela manhã, a dama generosa lembrou- se do mendigo e chamando um lacaio recomendou-lhe que levasse os cobertores. Quando este chegou ao local o homem estava morto. Morrera congelado pela madrugada.
                O Dr. Bezerra concluiu:
                "Enquanto se discute a caridade, o sofredor morre ao abandono. A caridade tem que ser o socorro do momento, depois discute-se o que se fará. Não fiques triste. Prossegue, assim mesmo, e confia."
                A “Casa de Jesus” me ensinou a trabalhar, a dar banho em doentes, a atender diretamente os enfermos. André ficava totalmente imobilizado e fazíamos tudo para atendê-lo. O outro, hemiplégico, chamava-se Aloísio, também era carregado.
                Durante três anos mantivemos a casa. Numa maré do mês de agosto, que é muito forte, as águas subiram e derrubaram a casa. Tiramos os doentes, rapidamente. Lá no “Caminho da Redenção",  o prédio possuía vários quartos e ali os alojamos, porque a maré tombou a casinha e o terreno sumiu...
                Um dia, quando cheguei para a reunião, Aloísio estava na crise de nervos; aproximando-me dele, perguntei-lhe:
                — Como vai, Aloísio, está melhor?
                Em meio à crise, num acesso de raiva, ele pegou o urinol e derramou-o na minha cabeça. Naturalmente me veio uma reação, mas, eu pensei, ele é um doente mental.
                Tive que ir me limpar e trocar de roupa.
                Depois, quando se iniciou a “Colônia da Fraternidade”, no bairro de Pau da Lima, já não podíamos cuidar deles em outro local. Levamos Aloísio e o colocamos numa casinha. Ele morreu em nossos braços. Assim, nós nos preparamos para esse Cristianismo de ação.
                Agora, as tias já estão ficando idosas. Oito anos atrás, uma delas teve um derrame cerebral.  Quase sempre, aquela que colaborou, quando idosa, é colocada em asilo. É muito cômodo! Lá, na Irmã Dulce, eu creio conseguir as vagas possíveis, no asilo de velhos, pois penso que não me seriam recusadas. Mas, eu reflito que, se elas ajudaram a criar as nossas crianças, agora é a hora de tomarmos conta delas, enquanto viverem.
                Uma coisa comovedora ocorreu. Uma das meninas que ela criou, a Verinha, que já está com dezoito anos, me informou:
                — Tio Divaldo, eu fico ajudando a tia Marieta.
                Nós temos uma enfermeira, funcionários, é só chegar e mandar fazer o necessário, mas eu tenho que dar o exemplo. Porque é muito fácil amar a pessoa bonitinha, sendo difícil amar o aleijado, o feio, o doente. Eu comecei, também, a tomar conta dela, pois eu já adquiri o hábito de tratar os doentes. Para mim, este é o Cristianismo que me faz bem. Pregar é muito fácil, cuidar de crianças é muito gratificante porque nos agrada muito, mas, a Caravana “Auta de Souza”...
                Certo dia, Auta de Souza falou:
                — Meu filho, eu quero que você vá visitar os pobres da invasão.
                Assim, passamos a ir, levávamos sacos de queimados (balas) e distribuíamos. Hoje, nós temos cento e setenta famílias, porém, famílias irrecuperáveis, de hansenianos, de cegos, paralíticos, doentes, loucos. Acompanhamo-los até a hora da morte e fazemos o enterro: a primeira coisa que as velhinhas pedem, é que não sejam jogadas na vala, enroladas em lençol; pelo menos um caixãozinho...
                Temos que convidar os companheiros (não é que todo mundo vá dar banho em pobre, não é isso) para a ação da caridade vivida, numa experiência que fará muito bem a nós mesmos. Devemos lidar com os loucos, os obsidiados, os feridos, os ingratos, porque com os demais a gente recebe a gratificação, nessa convivência agradável que estamos tendo. Está desaparecendo tudo isso, porque o espírita está ficando muito intelectualizado.
                  Isto, a mim, me fascina esse ângulo do Cristianismo, porque aí não há ninguém para competir conosco, não há ninguém para ter inveja, para falar mal, porque ninguém quer ir lá, à lama.
                O exemplo de Chico Xavier a vida inteira é digno de aplauso, porque ele atendia na peregrinação com aquele povo todo, mas, os mais graves, os piores, ele visitava sozinho, nas noites de quinta-feira. Como eu faço as minhas visitas, nos buracos de Pau da Lima, de noite, escondido até do pessoal da “Mansão”, para que ninguém vá comigo, porque, senão, quem faz a caridade são eles e não eu. E quando é que eu vou fazer a caridade? Se eu peço, as pessoas generosas dão e eu aplico isso para os que necessitam, mas esta é a caridade daquelas pessoas. Quando é que eu vou fazer a minha caridade pessoal?! Que não tem que ser, necessariamente, com dinheiro. Portanto, eu vou lá, tenha visitas em casa ou não. Fazemos os Natais todos, mas, depois, de madrugada, escondido, sozinho, eu saio com os meus pacotes para ir aos meus doentes — se é que posso chamá-los assim. Se eu for com a turma toda é uma beleza, mas é uma festa! E eu estaria exibindo os meus necessitados. Por isso, muita gente me vê, mas não me conhece."



2 comentários:

  1. Relato impressionante. Me emocionei profundamente com este exemplo do Divaldo. O amigo saberia se este trecho é de algum livro? Obrigado. E parabéns pelo blog!

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    1. Olá Johnper. Este relato faz parte do livro "O Semeador de Estrelas", de Suely Caldas Shubert. O Livro é maravilhoso e contém passagens da vida de Divaldo Franco, este Espírita com "E" maiúsculo. Recomendo a aquisição. Abraço, Marcelo

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